Pesquisa-ação pioneira em comunidade quilombola

Comunidade quilombola propõe ações para ampliar o acesso das mulheres a serviços públicos e enfrentar o racismo institucional

Em 10/11/25 16:20. Atualizada em 10/11/25 16:22.

Pesquisa-ação da primeira mestranda quilombola do PPGSC/UFG, apresentada em universidade canadense, fortalece a autonomia local e inspira novas práticas em saúde coletiva

A pesquisadora Rayza Monnyelly de Souza Pereira, do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (PPGSC/IPTSP), apresentou na Université de Sherbrooke (Canadá) os resultados da sua dissertação de mestrado durante o evento Recherche Avec. O estudo vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Agroecologia e Saúde (NEPEAS/IPTSP) e orientado pela professora do IPTSP Fabiana Ribeiro Santana avaliou as barreiras e as possibilidades de acesso à política pública de assistência social vivenciadas por mulheres negras de uma comunidade quilombola do estado de Goiás. 

 

Rayza Monnyelly de Souza Pereira

 

Além de estudar, Rayza Monnyelly participou das vivências do quilombo para entender e sugerir ações para endereçar as questões encontradas. Uma das principais descobertas foi a estratégia de uso do “tom de imposição” e o acionamento de redes pessoais como formas legítimas de agência e resistência ativa. Apesar de fortalecer o sentimento de dignidade, de “não se calar” e reforçar o papel das mulheres como lideranças comunitárias, essa abordagem impõe um custo à sua utilização. “Implica em um estado constante de alerta, exaustão, pode gerar sofrimento psíquico, como estresse, ansiedade e sentimento de injustiça constante, não se deve naturalizar uma luta constante para garantir direitos já adquiridos contra instituições que deveriam acolher e não criar desgaste emocional”. A pesquisadora acrescenta que essas estratégias também não garantem o acesso contínuo e estruturado à política de assistência social. “O que deveria ser uma viabilização de direito, se torna uma batalha individual e gera uma desigualdade entre quem ‘sabe se impor’ ou quem tem conexões e quem não tem”.

A pesquisa identificou que as mulheres quilombolas relatam práticas institucionais que "culpabilizam, segregam e invisibilizam" suas demandas psicossociais. Rayza Monnyelly identificou essa realidade no cotidiano das quilombolas por terem suas dificuldades vistas como fruto de escolhas pessoais e não de desigualdades estruturais. “Muitas vezes são culpabilizadas pela pobreza em que estão inseridas, são tratadas como ‘acomodadas’ ou ‘dependentes de benefício, ignorando a história de exclusão territorial, econômica e racial que limita suas oportunidades”. Essa realidade de negação de direitos e barreiras a serviços de saúde e assistência social, por exemplo, vai ao encontro do vivenciado por Lucilene dos Santos Rosa, quilombola do território Kalunga na região de Cavalcante, ao norte do estado de Goiás. “Esses direitos de reparação histórica, de acesso à escola, à faculdade, à saúde, à educação [são limitados]. A negação dos direitos para as mulheres também parte de serem estereotipadas –  é muito comum – principalmente no serviço social. Quando elas vão buscar de fato um apoio, uma orientação para ter algum acesso, já são vistas como as mulheres parideiras, que têm muitos [filhos] para poder ganhar benefício”.

A orientadora do estudo, professora Fabiana Ribeiro Santana do IPTSP, explica como os estudos reorientaram e fundamentaram a discussão dos dados de diversos Ciclos de Estudos sobre as condições de vida e saúde de populações quilombolas na perspectiva decolonial. “Eles nos ajudam a superar a colonialidade e o racismo epistêmico ainda predominantes no contexto acadêmico. A presença da mestranda Rayza no núcleo e no programa de pós-graduação também tem esse grande potencial e é motivo de orgulho e alegria”.

 

"Ser mulher é impedimento, ser mulher e preta é o dobro"

Uma das participantes da pesquisa exemplificou a abordagem da interseccionalidade  que guia o estudo ao afirmar que "ser mulher é impedimento, ser mulher e preta é o dobro". Monnyelly explica que o conceito abarca que os marcadores sociais de raça, gênero e classe se entrelaçam para intensificar as opressões vividas pelas mulheres quilombolas no acesso aos seus direitos. “A interseccionalidade, conceito desenvolvido pela Kimberlé Crenshaw, propõe que os sistemas de opressão não operam separadamente, mas combinados, produzindo experiências únicas de exclusão. A fala da participante demonstra claramente isso, ela reconhece que o gênero, por si só, já impõe limites em uma sociedade patriarcal, mas, ao adicionar a dimensão racial, os limites se agravam ainda mais.”

 

Rayza Monnyelly

 

A abordagem interseccional, explica Santana, agrega profundidade às análises acadêmicas sob uma nova perspectiva: “A presença da mestranda Rayza no núcleo e no programa de pós-graduação também tem esse grande potencial e é motivo de orgulho e alegria. As inquietações de pesquisa dessa mulher-quilombola têm uma lente interseccional e isso nos ajudará a compreender como a raça e a etnia se cruzam com outros marcadores sociais, produzindo barreiras de acesso às políticas públicas. Sabemos hoje que um status social marginalizado interseccional pode criar barreiras maiores do que apenas um status marginalizado”.

 

Lucilene Kalunga, como é conhecida, explica que o entendimento dessas múltiplas dimensões é um processo interno de vivência construída. “Hoje eu entendo as diferenças, quando eu saí do meu território eu deparei com as diferenças e com os diferentes, só que isso me fez olhar pra trás, me reconectar mais com o quilombo, com as minhas raízes, buscar saber quem eu era, entender o que era ser pertencente a um quilombo. Porque, enquanto eu morava lá, eu não precisava entender isso, pra mim não fazia sentido, né?”. A pesquisa-ação de Rayza Monnyelly conseguiu atrelar essas descobertas ao delimitar que “as mulheres quilombolas vivem uma condição social em que suas existências são sistematicamente desvalorizadas, por serem mulheres, negras, pobres e, muitas vezes, rurais, mas, ao adicionar a dimensão racial os limites se agravam ainda mais”, explica.

 

Pesquisa-ação

O caráter de destaque do estudo de Rayza Monnyelly de Souza Pereira foi a realização de uma pesquisa-ação. Essa abordagem propõe não apenas compreender a realidade, mas intervir nela de forma crítica e transformadora. Por isso, ao final da pesquisa de mestrado apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), foi proposto um plano de ação pensado coletivamente com a comunidade. “O plano de ação foi apresentado para vereadores e para a prefeitura e prevê oficinas continuadas com lideranças quilombolas, estudiosos da questão racial e profissionais do serviço público; construção de conselhos ou comitês locais com representação de mulheres quilombolas; desenvolvimento de rodas de conversa permanentes com retorno efetivo e de convênios para a oferta de projetos de saúde, educação e lazer”. 

 

Lucilene Kalunga

 

Lucilene, como ativista ligada ao movimento quilombola, reflete sobre a importância de eleger representantes políticos com letramento racial para desenvolver ações que ativamente pensem em políticas públicas acessíveis às mulheres quilombolas. “Nós nunca tivemos um deputado ou deputada federal ou estadual ou uma vereadora ou um prefeito quilombola na capital, Goiânia. E aí eu me envolvo nesse meio, participo da política ativamente, faço incentivo de que outras mulheres ocupem esse espaço”, relata.

 

*Victor Hugo Gomes é estagiário em jornalismo no projeto IPTSP Comunica e é supervisionado pela jornalista Marina Sousa

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