Bianca Lopes - Saúde Coletiva

Acesso à saúde é limitado e não funciona a toda população trans

On 03/21/23 14:12 . Updated at 03/22/23 11:54 .

Constatação é de pesquisa da UFG, que destaca falta de inclusão e negligências no caminho da afirmação de gênero

Texto: Larissa Rocha

A trajetória de uma pessoa trans durante toda a vida é marcada por lutas e por uma busca incansável para alcançar igualdade de direitos e inclusão dentro dos diversos âmbitos da sociedade. E no que diz respeito à garantia, manutenção e proteção à saúde dessas pessoas, a realidade não é diferente. Como evidencia a pesquisa de Bianca Lopes Rosa, “Cuidados em saúde no processo transexualizador”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (PPGSC/IPTSP/UFG), o acesso aos programas e cuidados em Saúde direcionados à população trans do país é limitado e burocrático e, em parte, não funcionam de maneira adequada e eficiente para atender a todos.

A pesquisa tem como objetivo dar visibilidade às ações feitas em prol dessa população, revelando como funciona a política do direito à saúde trans no país. Além disso, segundo a autora do estudo, visa mostrar os avanços alcançados ao longo do tempo, evidenciando os desafios do cenário atual acerca do processo de afirmação de gênero, e também busca destacar a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema de garantia de direitos da população trans.

Para Bianca Lopes, apesar dos avanços e da criação de políticas públicas afirmativas existentes como as que são desenvolvidas pelo SUS, as dificuldades, falhas e barreiras ainda se mostram resistentes. Segundo ela, “os profissionais de saúde estão despreparados para receber a população trans nas suas dinâmicas de trabalho”. Ela também observa que “o processo de educação permanente desses profissionais é deficitário”.

Defesa de mestrado Bianca
Bianca Lopes Rosa durante a defesa de sua dissertação

 

A autora, que faz parte da comunidade trans, é usuária da política do processo transexualizador pelo SUS, ativista dos direitos das pessoas trans/travestis e gestora pública responsável pela área técnica de Atenção à Saúde LGBTQIAPN+ na Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, ressalta que estas questões relacionadas às falhas no atendimento e na recepção dos pacientes trans pelos profissionais são resultado das violências e da transfobia ainda presentes no Brasil. Segundo ela, a transfobia possui nuances que se relacionam com gênero, raça e classe e, por conta disso, pessoas trans com características socioeconômicas e culturais diversas  e vulneráveis acabam percorrendo caminhos diferentes para alcançarem os mesmos objetivos, isso quando há a possibilidade de ter acesso aos serviços  que são oferecidos.

“Apesar de ter encontrado a transfobia várias vezes na minha trajetória de vida e ainda encontro, eu considero que vivo em arauto de privilégios em relação aos meus pares, pois a realidade de mulheres trans e travestis negras periféricas é bem diferente, porque geralmente são expostas a todos os tipos de violências: expulsas de casa cedo, da escola, do mercado de trabalho e empurradas para condições de marginalidade”, afirma a pesquisadora.

Bianca coloca em questão o fato de essas situações não serem consideradas como determinantes sociais em um processo de inclusão, pois as ações direcionam-se ao grupo, mas apenas uma pequena parte consegue acessá-las. Com isso ela destaca mais uma vez na sua pesquisa a negligência que ainda persiste com relação ao acesso e inclusão de toda a população trans aos direitos e programas que são destinados a ela. 

“Tive uma família que me acolheu, me protegeu, apoiou, e me oportunizou estudos para que eu pudesse ter condições de me desenvolver dignamente como qualquer outra pessoa, suporte esse que o estado brasileiro negligenciou a mim e a tantas outras pessoas trans, negando reiteradamente nossas existências”.

Além de evidenciar a exclusão e a falta de acesso aos programas, a pesquisa ressalta uma outra questão importante que é a negligência do estado com relação ao processo de transexualização de crianças e adolescentes. Foi constatado com as análises que essa etapa tem sido esquecida e por conta disso reverbera em danos à saúde mental dessas pessoas que estão em desenvolvimento e tem necessidades de acompanhamento especializado no processo transexualizador. 

Saúde pública e gratuita

O Processo Transexualizador (TX) é um programa do SUS voltado à população trans para a realização de procedimentos de modificação corporal e genital com acompanhamento multiprofissional. O atendimento conta com serviços ambulatoriais, com acompanhamento clínico, psicológico e hormonização, e serviços hospitalares, que incluem a realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório. 

Em Goiás o processo TX é realizado pelo Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG), que foi o local escolhido por Bianca para a realização da pesquisa realizada com os pacientes usuários do Ambulatório Trans do HGG, que é uma das unidades de referência do programa público do SUS no Brasil. 

Como ressaltado pela autora da pesquisa, apesar de existirem locais como esse, a caminhada até conseguir acesso aos serviços especializados é muito cansativa e desgastante, principalmente quando se vive em situação de vulnerabilidade e não possui apoio da família, nem da sociedade. Com isso esta fase se torna mais uma barreira a ser superada por pessoas trans que desejam receber os cuidados em saúde e passar pelo processo transexualizador. 

Bianca acredita que a pesquisa é necessária e importante para denunciar o apagamento histórico, social, etnico e econômico da população trans no país, que nega outros direitos fundamentais à população trans e que acaba desaguando na área da Saúde e em diversas outras áreas. Por conta disso ela busca, com a pesquisa, visibilizar a pauta política da população trans não só no âmbito da Saúde, mas deseja trazer isso também para o ambiente acadêmico, que de certa forma influencia na saúde dessas pessoas. 

Segundo ela, “é necessário que se oportunize que as pessoas trans/travestis participem e contribuam nos diferentes espaços da comunidade universitária, e que esta esteja consciente e imbuída das necessidades de inclusão e naturalização da presença das pessoas trans/travestis dentro da academia não apenas como população pesquisada, mas como pesquisadores e pesquisadoras”.

Com a defesa de sua dissertação de mestrado, Bianca Lopes Rosa, sendo uma mulher trans, alcançou destaque na comunidade acadêmica, que é algo desejável por ela a todas as pessoas trans que queiram estudar e serem pesquisadoras. Além disso, com a finalização desta etapa, ela se tornou a primeira pessoa trans a obter o título de mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG.

Bianca afirma estar feliz, mas questiona o fato de ser a única a obter a conquista. “Incomoda-me o fato de pensar que sou a primeira pessoa trans a ingressar e finalizar o curso em 13 anos de existência do programa, e a pergunta que não quer calar é: Será que eu fui a única pessoa trans a me interessar pelo programa/título ou outras pessoas trans até quiseram, mas não tiveram condições e/ou oportunidades de concorrer a uma vaga no processo seletivo?”.

Fonte: Jornal UFG

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