Judicialização na saúde pública e privada
Como funcionam os litígios referentes ao direito da saúde e os desafios que o Estado enfrenta para a prestação de serviços de saúde
Texto e arte: Ana Lúcia Leão e Marina Sousa (UFG)
A Constituição Federal (CF) Brasileira de 1988, traz no artigo 196° que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação''. Além disso, o artigo 6° da CF, traz que a Saúde é um dos direitos sociais, ou seja, são os direitos aplicados a todos os indivíduos e que visam resguardar direitos mínimos e de qualidade de vida. E quando esses direitos constitucionais são negligenciados, muitas das vezes, cidadãos recorrem ao Poder Judiciário em busca de sua garantia, desta forma, temos o surgimento da judicialização em matéria de saúde.
Com a criação do SUS em 1990, o Brasil instituiu uma política pública de acesso universal, integral e equânime à saúde. Segundo o médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas (UERJ), Denizar Vianna, os limites da integralidade não são explícitos. “Com o crescimento da demanda por cuidados de saúde, consequência da mudança demográfica e epidemiológica, houve progressivamente maior dificuldade no acesso às tecnologias diagnósticas e terapêuticas de alto custo. Este cenário fomenta o fenômeno da judicialização no Brasil”.
O Direito e a Saúde são campos convergentes, sendo aclamados de forma fervorosa pela sociedade quando um ou o outro são ameaçados. O empoderamento das garantias sociais e a voz cada vez mais ativa do povo aproximou as instituições jurídicas das matérias de saúde, reforça a advogada e servidora da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, Andréia Alcântara.
O professor Denizar Vianna afirma ainda que “A judicialização sinalizou, no primeiro momento, a necessidade de ajustes na regulação da incorporação tecnológica, tanto no SUS quanto no Sistema Suplementar, com maior transparência e celeridade no processo de avaliação de tecnologias em saúde. Entretanto, a judicialização, que deveria ser a exceção, tornou-se a regra para acesso de algumas tecnologias de alto custo, principalmente de medicamentos para o câncer e as doenças raras.”
Como funciona
No Brasil temos um Sistema de Saúde híbrido: público, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e privado, com o Sistema de Saúde Suplementar (SSS) e uma pequena parcela de desembolso direto, que juntos são o sustentáculo do Sistema Nacional de Saúde. Andréia Alcântara, que também já foi superintendente de Regulação e Políticas de Saúde de Goiânia, afirma “o SUS e a Saúde Suplementar foram concebidos para atuarem de forma harmônica e conexa, contudo, nos últimos anos houveram tentativas de alteração de normas regulatórias no setor privado sob a fundamentação de que conforme a expansão de mercado privado ocorresse "fôlego novo” entraria nas narinas do SUS.
Andréia Alcântara ainda argumenta que “é deveras imprudente instigar uma dualidade competitiva entre ambos, afinal, eles visam o mesmo objetivo, qual seja, garantir acesso aos serviços de saúde fazendo cumprir os direitos sociais previstos em nossa carta constitucional, cada qual devendo ser responsável pelo compromisso que assumiu e sem dele se eximir. O Estado instituiu a colaboração solidária dos dois sistemas para operacionalizar a entrega de serviços de saúde em território nacional, sendo o SUS regulado pelo Ministério da Saúde e a Saúde Suplementar (serviço privado) regulada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)”, explica a advogada.
A Saúde Suplementar é uma alternativa de obtenção de serviços assistenciais para a população. Conforme vemos no mapa abaixo, da ANS, em várias regiões do país a cobertura assistencial à saúde ofertada por planos privados ultrapassa 20% do total da população, especialmente nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Tornando-se indispensável para o Estado que, dificilmente, teria como suportar a incorporação dos gastos desse setor no orçamento da União.
Dados consolidados da Saúde Suplementar demonstram que o número de beneficiários da Saúde Suplementar passou de trinta (30) milhões no ano de 2000 para cinquenta (50) milhões em 2022, conforme a figura abaixo.
Fiscalização
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atento às necessidades jurisdicionais de acesso à informações disponibiliza em seu portal virtual dados processuais de saúde, intitulado de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde, ele mostra que são mais de 268 mil ações judiciais relacionadas à assistência à saúde em tramitação neste ano de 2022, sendo a maioria contra o SUS (65%) e as demais contra a saúde suplementar (35%), conforme a figura abaixo.
De acordo com os dados apresentados pelo conselheiro do CNJ, Richard Pae Kim, em abril deste ano, durante a abertura do seminário “Judicialização da Saúde Suplementar”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no ano de 2020, das demandas judiciais, 77,7% das ações foram julgadas procedentes contra os órgãos da saúde pública, enquanto 10% consideradas improcedentes e 12,1%, parcialmente procedentes”. Por sua vez, na saúde suplementar, os dados mostram que 42,9% dos casos são julgados procedentes, 36,8%, improcedentes e 20,3 %, parcialmente procedentes.
Judiciário
Segundo o juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) e que também integra o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde do CNJ, Eduardo Perez, explica que o número das demandas contra a saúde pública são sempre muito maiores, pois a saúde suplementar é demandada em alguns pontos, não em tudo - pois, existem muitas limitações naquilo que é demandado contra as operadoras do plano de saúde. O magistrado ainda pontua que a lei Nº 14.454, de 2022, alterou a Lei nº 9.656/1998, possibilitando agora, a extinção das limitações em relação aos procedimentos médicos e odontológicos oferecidos pelos planos de saúde. “Antes existia a discussão sobre o rol taxativo e o rol exemplificativo (...) O que mostrava uma série de limitações, agora desde de que haja evidência científica e plano terapêutico, ou exista parecer positivo da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) no SUS, será aplicado”, diz Eduardo Perez.
Ou seja, o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo - os planos de saúde ficam obrigados a arcar com no mínimo a lista mantida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O juiz de direito ainda elucida que o SUS é uma estrutura pública que é embasada pelo princípio da universalidade, o que determina que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação, têm direito ao acesso às ações e serviços de saúde, mas é preciso ter cuidado. “Acaba surgindo litígios que não são totalmente cobertos pelo SUS. (...) Há diversos temas, tanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ), quanto no Superior Tribunal Federal (STF), de assuntos que estão fora da cobertura da saúde pública, ou seja, até da prestação do próprio SUS (...) A saúde pública é muito ampla, e por isso há um viés de julgamento, de que o Estado precisa ser um provedor universal, bem maior daquilo que tem que ser entregue”. Há ainda o fato, mas isso é um pensamento meu, uma autocrítica, que o Judiciário julga essas matérias relacionadas à saúde pública sem a devida análise e profundidade de conhecimento sobre as próprias competências do SUS, como estudos de saúde pública, do que é a gestão de saúde pública e etc (...) Nós proferimos decisões, mas não temos o conhecimento global dos profissionais da área que se debruçam sobre o tema e que fazem uma análise ampla, como por exemplo, a noção da repartição de competências dentro do SUS, e isso, talvez, justifique, imagino eu, pela experiência, não fiz nenhum estudo mais aprofundado a respeito, mas mostra o motivo de existir um percentual muito maior de procedência de casos do que de improcedência ”.
Exemplificando todo o cenário, durante a III Jornada de Direito da Saúde do CNJ, que ocorreu em 2019, foi apresentado um estudo sobre a “Judicialização da Saúde no Brasil - Perfil das Demandas, causas e propostas de solução” que trouxe o exemplo de ações atinentes à saúde no Tribunal de Justiça de São Paulo, que mostrou que 74% da ações ajuizadas são julgadas procedentes. Na tentativa de explorar as linhas raciocínio por trás das decisões, o estudo pautou julgamentos procedentes com expressões que poderiam significar o recurso de juízes a normas ou instituições responsáveis, quer pela regulação da política de saúde pública, quer pela regulação da própria judicialização da saúde como a ANVISA, NAT, CONITEC, ADPF 45 e CNJ.
O juiz de direito argumenta que a magistratura tem procurado uma qualificação da judicialização da saúde, pois nem sempre aquilo que se pode efetivamente, é aquilo que deve ser entregue. “Nós temos que nos fundar na ciência e na medicina baseada em evidência”, finaliza o juiz Eduardo Perez.
É preciso ter cautela
A busca da saúde por meio da guarda jurisdicional, em muitos casos não considera o impacto que as decisões judiciais podem ter sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde. O médico Denizar Vianna conta que este fenômeno desencadeou desarranjos no planejamento orçamentário da União, Estados e Municípios e, também, das operadoras de planos de saúde.
Para Andréia Alcântara é louvável que as regras e operacionalização do ressarcimento ao SUS tenham avançado de forma tão robusta, isso se compararmos aos cenários de um passado recente, todavia, há que se observar que mesmo no exercício garantidor de ressarcimento o recurso para custeio daquele serviço já terá saído do orçamento público, maculando o cumprimento dos aprovisionamentos financeiros feitos para aquela competência financeira.
Para Denizar Vianna, o uso dos recursos via judicialização também não garante equidade, pois os segmentos mais informados e com maior poder aquisitivo da população são também os principais demandantes das ações judiciais. “Outro agravante da judicialização é a falta de governança por parte do gestor e formulador de saúde em usar a tecnologia certa, para o paciente certo, na hora certa.”
Por fim, a advogada Andréia Alcântara pondera que fomentar a capacidade transacional entre Saúde Suplementar e SUS significa aprimorar o Sistema Nacional de Saúde, temas como a judicialização de causas individuais na esfera da Saúde Suplementar que em dado momento caem no colo do SUS devem imperiosamente ser enfrentadas. “A articulação para manejar situações típicas de negativas de planos privados a fim de filtrar que desaguam nos cofres públicos devem ser temas de agendas entre os atores figuram neste cenário”, pondera a advogada.
Andréia Alcântara Barbosa, Advogada Corporativa de Saúde, Mestre em Direito da Saúde, Doutoranda em Ciências da Saúde-UFG, Pesquisadora na Fundação de Apoio ao Hospital das Clínicas da UFG, Consultora Jurídica da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira- Hospital Albert Einstein, Ex-Superintendente de Regulação e Políticas de Saúde de Goiânia, Servidora Pública efetiva da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia.
Denizar Vianna Araújo, médico com mestrado e doutorado pela UERJ, Professor Titular da Faculdade de Ciências Médicas - UERJ, Ex- Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde -
Eduardo Perez de Oliveira- Juiz de Direito pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Processo Constitucional pela UFG e em Filosofia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
Fonte: Comissão de Comunicação IPTSP
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